segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O fundo do poço.

(...)O fundo do poço é um lugar úmido, daquela umidade necessária e suja de onde brotam as delicadas e verdes avencas, é escuro, como a terra mais secreta e dura de onde brotam as sementes mais difíceis, de onde explodem as mais improváveis, o fundo do poço é frio e distante, daí este movimento de abraçar o corpo, acarinhar a alma em busca de calor novamente, de calor, o fundo do poço é uma estufa ao contrário, é um avesso, só aquece o que está por dentro, concentra a energia, o fundo do poço é uma terra de ninguém, longe de qualquer lugar, zona limítrofe, de fronteira entre o que jamais voltarei a ser e o que eu nem sonhava que poderia ser, aí estamos nós, sós e perdidos, sem pai, sem mãe, sem nada.
O fundo do poço é Deus, o Deus que se quiser.
O fundo do poço é um coração, um rato, uma barata, uma prenda de roupa antiga, uma carta de despedida, aquela noite de amor, os filhos que se foram, os amigos mortos, os amores que não vieram, o fundo do poço é a nossa medida, a história das nossas perdas, a história dos nossos sonhos, das nossas ilusões.
O fundo do poço é um buraco negro no universo, quando chegamos ao fundo do poço não temos forças para olhar para o céu, olhamos para dentro, olhamos para dentro e, um dia, dentro é como o céu que se vê do fundo do poço, e aí somos projetados para o universo, com força e desajeitamento, para um universo brilhante e luminoso, daqueles de doer nos olhos, somos projetados para as estrelas, para o incomensurável e também indizível brilho das estrelas.
O fundo do poço é o céu.
O fundo do poço é iluminado, o fundo do poço é o lugar da nossa dor que é o mesmo lugar da nossa alegria. Da nossa desesperança e do adeus.
O fundo do poço é um berço, úmido, escuro, quente por dentro, é uma urna fechada, o fundo do poço é uma matriz, um ovo, uma casca, uma casa.
O fundo do poço é quando a gente está em Deus, o fundo do poço é quando a gente volta para casa, o fundo do poço é quando a gente chega em casa, e pode estar, descansar, ficar e ser. Respirar a brisa das noites suaves de antes do verão, manhãs frias, tardes chuvosas de outono, brilho das estrelas, cheiro de mar, o entardecer tranqüilo, noites sem dormir, o fundo do poço é onde aprendemos a olhar o mundo, o beco, ruas perdidas e tortuosas, velhas e pequenas igrejas abandonadas, a natureza, o outro.
O fundo do poço é um luxo.
 O fundo do poço não é para qualquer um. O céu também não.
(autor desconhecido)