sábado, 17 de janeiro de 2009

Toma!


Tu nem sabes, mas já te dei tudo que era meu.

E em troca eu quis apenas esse eco torto de felicidade que me alisa a pele estremecida e pelo qual quase deixo de respirar, me arrepio inteira, viro apenas um corpo quieto guardado sob a mão invisível feita disso que eu sinto e que entra pela minha boca e sai pelos meus olhos e por qualquer gesto meu rasgado no espaço, qualquer gesto meu me abandona e vira teu, eu já te dei.

É tudo tão simples e silencioso, e tudo grita por dentro, e o que eu posso fazer?
Eu deixo... Tu nem sabes, mas enquanto ainda estás aí do lado de fora, parado, esperando que eu te abra a porta e te diga qualquer coisa nessa língua muda que tu entendes tão perfeitamente e que tão perfeitamente nos cabe, eu já não estou aqui, já me transportei para o lado onde não existe aqui e nem lá, em que unicamente há uma história para dois em qualquer lugar para onde quer que se virem meus pés afoitos, pequeninos pés sem memória buscando reinventar o chão.

O calor que eriça teus pelos sob as gotas d’água também rodopia entre meus dedos numa felicidade corrediça e quente, e sei que estás aí sorrindo e eu estou aqui sorrindo e quase hesitando, mas é tarde, eu já te dei tudo que era meu, inclusive aquele passo que restava pesado e desinibiu-se e virou destino cumprindo-se em linha reta, tudo que era meu eu já te dei.

E sei que estás aí parado, molhado, esperando, e que a chuva que cai sobre a tua cabeça é nada, como é nada tudo que não é chuva, nem tu, nem eu, nem essa porta se abrindo para o que eu não sei o que é, mas quero muito saber, então entra, vem.

Eu tremo, sim, mas não é frio, é por não me restar nada que eu não queira absurdamente te entregar, toma.

Toma.

(Flávia Brito)